A crueldade do mercado: medicina, o curso mais importante; Críticas às escolas que supervalorizam aprovações em Medicina
Andando pelas ruas da cidade, percebe-se que é comum encontrar publicidade nos outdoors enfatizando os estudantes que passaram nos cursos de medicina. As imagens publicadas são tão frequentes e convincentes, nos outdoors e nas mídias de um modo geral, que transmitem o sentimento de que a capacidade de ingresso no curso médico, tão desejado, é inerente à instituição que está divulgando, e não ao aluno. Bem, essa é a mensagem exata que o marketing institucional quer passar. Entretanto, o foco do debate deste artigo está localizado nos impactos desse tipo de comercialização perante a comunidade.
O pensamento inicial remete a uma época em que passar em um curso de medicina era uma questão muito difícil, pois os números de vagas oferecidas para os cursos médicos eram pequenos. Além disso, devido à grande desigualdade social, ter alguém da família médico representava a segurança com a própria saúde, assim como a possibilidade de ascensão na escala econômica social.
Os números de vagas para os cursos de medicina aumentaram demasiadamente. Os dados demográficos médicos demonstram que o ingresso de novos médicos no mercado cresceu tanto, que existem cidades no Brasil que não têm vagas de trabalho para médicos em determinadas especialidades. A abertura das novas faculdades de medicina, ponderando-se o PBL (Problem-Based Learning), teve origem no Canadá (Universidade de McMaster) devido aos problemas dimensionais, o que facilitou muito a criação das novas faculdades de medicina no Brasil, principalmente adotado pelas instituições privadas (Investimento baixo, muitas vezes sem hospital universitário, centro de treinamento em parceria com médicos “professores”, instituições públicas e privadas). Com isso, o acesso ao curso de medicina tornou-se muito mais fácil, porém vinculado ao pagamento de contraprestações altíssimas ou endividamento a longo prazo. Será que a segurança e a resolubilidade dos problemas de ordem médica estão diretamente proporcionais ao crescente número de profissionais no mercado? Será que existem relações entre a indústria farmacêutica, escolas particulares de medicina e ensino médio privado na promoção e propagação das ideias de ser médico? Será que a base da argumentação do marketing ainda está relacionada com a grande desigualdade social (possibilidade de ascensão na escala econômica) e a “alta empregabilidade”?
Os países desenvolvidos têm o controle rigoroso da formação médica, pois enfatiza-se que os erros médicos são muito custosos (má formação médica), além do risco da demanda induzida pelo excesso da oferta. Por outro lado, cada vez mais, discute-se as inteligências artificiais (IAs) ocupando o lugar de médicos em diversos postos.
Portanto, a educação é um processo complexo que vai muito além de preparar alunos para carreiras específicas. No entanto, observa-se uma crescente prática em algumas escolas de supervalorizar as aprovações em cursos de Medicina, negligenciando os demais cursos e trajetórias profissionais. Essa abordagem revela um problema estrutural e cultural que merece uma análise crítica.
A Restrição do Conceito de Sucesso
Ao destacar apenas os alunos aprovados em Medicina, as escolas acabam promovendo uma visão limitada de sucesso. Isso ignora o fato de que outras áreas de conhecimento e profissões são igualmente essenciais para o funcionamento da sociedade. Engenheiros, professores, artistas, cientistas, psicólogos, entre outros, desempenham papéis fundamentais na construção de um mundo mais justo e sustentável.
Além disso, tal prática pode criar um ambiente de exclusão, levando os alunos que optam por outras áreas a se sentirem menos valorizados. Isso desmotiva talentos em potencial, que poderiam se destacar em suas áreas específicas, mas acabam internalizando uma sensação de fracasso.
Pressão Psicológica e Saúde Mental
A valorização excessiva das aprovações em Medicina, também, contribui para aumentar a pressão psicológica sobre os alunos. Muitos jovens se sentem obrigados a escolher essa carreira, não por vocação, mas por status social ou para atender às expectativas familiares e institucionais. Essa pressão pode levar a problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, além de afastar os estudantes de seus verdadeiros interesses e talentos.
Desigualdade e Elitismo
A exaltação da aprovação em Medicina também reforça um sistema elitista dentro da educação. Cursos como Medicina são tradicionalmente associados a um status elevado, mas essa associação reflete mais os privilégios sociais e econômicos do que a qualidade ou relevância da profissão em si. Ao perpetuar essa lógica, as escolas acabam reforçando desigualdades, em vez de promoverem um ambiente inclusivo e plural.
Cursar Medicina é, muitas vezes, uma possibilidade restrita a quem tem acesso a recursos financeiros significativos. O custo elevado de materiais didáticos, cursos preparatórios e, em muitos casos, de mensalidades em faculdades particulares cria uma barreira inicial que exclui uma parcela considerável da população. Quando escolas destacam exclusivamente esses resultados, elas endossam implicitamente uma lógica de exclusão, ignorando os esforços de alunos que buscam oportunidades em contextos mais desafiadores.
Por outro lado, ao colocar a aprovação em Medicina como a “meta suprema”, as escolas favorecem a elite econômica, que tem condições de investir nesse tipo de formação. Essa prática transforma a aprovação em Medicina não em um reflexo de mérito puro, mas em uma extensão do privilégio socioeconômico.
Culturalmente, Medicina é frequentemente associada a status elevado, tanto social quanto financeiro. As escolas que supervalorizam aprovações nesse curso reforçam essa visão hierarquizada, onde algumas profissões são consideradas mais importantes ou prestigiadas que outras. Isso reduz o valor de áreas igualmente essenciais, como Educação, Artes, Ciências Sociais e Tecnologia, que também desempenham papéis indispensáveis na sociedade, mas que frequentemente recebem menos reconhecimento.
Ao fazer isso, as escolas contribuem para perpetuar estereótipos de status que não refletem a diversidade de talentos e competências necessárias para uma sociedade equilibrada. Essa visão elitista não apenas desvaloriza outras profissões, mas também afasta alunos de origens mais humildes, que poderiam se destacar em áreas menos glamourizadas.
O Papel da Escola como Espaço de Formação Integral
As instituições de ensino devem ser um espaço de formação integral, onde cada aluno é incentivado a descobrir suas aptidões, interesses e paixões. Valorizar apenas uma carreira específica contradiz esse princípio. É necessário que as escolas invistam em uma educação ampla e diversificada, que promova a autonomia e a liberdade de escolha dos estudantes.
O Impacto na Percepção de Meritocracia
A ideia de que as aprovações em Medicina são um símbolo máximo de mérito também precisa ser problematizada. Muitas vezes, a preparação para entrar nesse curso depende de fatores alheios ao esforço individual, como acesso a uma educação de qualidade, suporte familiar e financeiro, e a possibilidade de dedicar anos exclusivamente ao estudo. Assim, quando escolas promovem aprovações em Medicina como o ápice do sucesso, elas obscurecem a realidade de que nem todos os alunos partem das mesmas condições.
Esse discurso meritocrático distorcido ignora as desigualdades estruturais que afetam as oportunidades educacionais e profissionais. Ele também reforça a exclusão de estudantes que, por razões econômicas ou sociais, não têm as mesmas possibilidades de competir em pé de igualdade para vagas em Medicina.
Finalmente, a ênfase em aprovações em Medicina marginaliza outros estudantes e profissionais dentro da própria comunidade educativa. Professores de disciplinas que não têm relação direta com o vestibular de Medicina, bem como alunos que escolhem cursos menos valorizados, tornam-se invisíveis nesse modelo de reconhecimento. Essa invisibilidade prejudica a construção de um ambiente educacional inclusivo e igualitário, onde todos se sintam valorizados e motivados a contribuir com seus talentos
Um Novo Olhar sobre o Futuro
A solução passa por uma mudança cultural. As escolas precisam reavaliar suas práticas de marketing e celebrar a diversidade de conquistas acadêmicas e profissionais de seus alunos. Reconhecer aprovações em cursos variados, projetos empreendedores e até conquistas não acadêmicas é fundamental para criar um ambiente de aprendizado mais inclusivo e equilibrado.
Ao transformar essa mentalidade, podemos construir uma educação que valorize todas as formas de talento e trabalho, preparando os alunos para um futuro em que cada um possa contribuir de maneira significativa para a sociedade, independentemente da profissão escolhida.
*Ângelo Augusto Araújo, MD, MBA, PhD (angeloaugusto@me.com).
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por Ângelo Augusto Araújo – jornalgrandebahia.com.br